terça-feira, 6 de março de 2018

Entre redes e anzóis poéticos de O Pescador, de Marcello Silva.



Por Francisco das Chagas Souza CARVALHO FILHO

O leitor que tiver em mãos O Pescador, encontrará sobretudo poemas e crônicas. Uma das características marcantes do livro é a intertextualidade, logo de inicio com Fernando Pessoa, mas se estende a outros autores, dentre eles Carlos Drummond de Andrade. Retomando Pessoa, Marcello Silva se indaga a respeito do “eu”, tema tão caro ao lusitano. Novamente em Quem me inventou, surge a perplexidade ou ceticismo diante do enigmático “eu”. Consta o verso: “Quem deu a mim o poder de ser eu?” (Marcello Silva). A voz do poeta segue firme, revelando seu modo de poetar, suas experiências. Há no eu lírico a preocupação com o olhar alheio e com a realidade que o circunda.
A poesia de Marcello Silva habita os versos livres de poemas em geral breves, marcados pela presença de um eu lírico interessado não apenas em amores passados, como na realidade, em gente anônima e paisagens da sua infância e na procura de si mesmo. Tanto a epígrafe do livro quanto os poemas da lavra do autor, revelam um leitor atento de Fernando Pessoa, que chega a parafraseá-lo no poema Paráfrase, em um processo de recriação. A seguir discorrerei sobre alguns assuntos abordados pelo poeta.
O tema da passagem do tempo comparece em Velho relógio, cuja abertura se dá por meio de uma citação de Mário Quintana, não por acaso, pois quem lê Quintana sabe de suas reflexões sobre o tempo. As memórias são trabalhadas sobretudo nos poemas incluídos na parte do livro denominada SAUDADES. Já o amor, aparece em PAIXÕES, por vezes com o desejo queimando feito fogo, mas guardado, outras vezes sob a nostalgia da consumação ou da possibilidade dela.

VIGÍLIA

“Perturba meu sono
Como um vulto da noite
Sem vigília
Face a face
Teu hálito herege
Que me ata o discernir
Entorpece-me
Senão teu brinquedo
Adiante sou nada.”
(Marcello Silva)

Nesse curto poema, a criatura amada surge como um assombro, uma força que age sobre aquele que ama. Trata-se de “um vulto da noite”, e vultos não possuem definição, são sombras; ilusão, miragem sem rosto, mas perturbador. E é nessa perturbação que se encontra o eu lírico. Merece atenção a expressão “hálito herege”. Estaria a possibilidade da consumação carnal envolta de pecado, remetendo inclusive às figuras de Adão e Eva? O profano segue coagido pelo sagrado. Há uma relação aparentemente desigual. Sendo o amador, espécie de brinquedo do vulto adorado. Não seríamos justamente vultos uns para os outros? 
A poesia crítica das mazelas também se faz presente em uma série de poemas inclusos em SOCIAL POLÍTICO. Dessa vertente destaco Dia novo?, pelo modo cortante com que aborda a falsa ideia de que o ano que vem é melhor do que o anterior. O poema evoca situações extremas mundo afora que não desaparecerão com a simples chegada do Ano Novo. O poeta não partilha de tal ingenuidade, como ilustra o trecho abaixo:

“O que dirão os libaneses em seus dias infinitos de
Horrores?
Haverá sonhos no sono
Sem endereço dos meninos de rua?
O que importa um dia novo
Se vivê-lo é decadência igual de outrora
Será apenas mais um dia apático
Complemento de um tédio sonâmbulo.”


Na parte intitulada RAÍZES, há uma busca pela identidade, remontado à ancestralidade, inclusive, e ao lugar de nascença. Nesse sentido, é de esperar que o poeta retome a Fazenda Poção, cante seu torrão. Como se percebe, o poeta não se prende a um dado tema, mas estende sua curiosidade por outros. Tanto que dividiu o livro, além das partes já mencionadas, em EU PESCADOR (que abre a obra) e DEVANEIOS (fechamento). O poema que abre o livro (Eu, somente), reflete sobre o “eu”, assim findando: “E então eu, tão diferente de mim, continuarei/Sendo eu, somente” (Marcello Silva). Essa hipótese chamada “eu”, no fim das contas, é semelhante e contrário, próxima e distante.
Da seção final do livro transcrevo o poema Fusão:

“Uma pedra está na tarde
Ou é a tarde que está na pedra?
No entanto
Uma invade a outra
A compacta mistura formada
Permanece apoiada

Na arquitetura da existência

Uma pedra é feita de tarde
Assim como a tarde é filha da pedra,
Enamoradas desde o surgimento da vida

Ambas penetram-se
E um grito rouco e sangrento
Cresce no segredo de seus corpos.”
(Marcello Silva)


Reservo-me o direito a uma suposição, é provável que a pedra encontre eco na própria vida do poeta, tendo em vista que a cidade natal de Marcello Silva, é conhecida dentre outras coisas, pelas pedras gigantes existentes na região. Sendo assim, o elemento pedra acha-se entranhado nas vivências do escritor, sua presença material, faz parte das experiências do autor, sendo relevante atentar para o fato diante da concretude ou simbolismo da pedra. De resto, indico ao leitor interessado em poesia o livro de estreia desse autor que veio para ficar.







Referência

SILVA, Marcello. O Pescador. Lisboa-Portugal: Chiado, 2015.
 
































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